Reavaliando preconceitos e aversões, celebridades
têm mesmo seu valor. A atriz Angelina Jolie expandiu drasticamente sua fama com
a notícia da mastectomia total bilateral à qual se submeteu depois de detectar,
através de exames genéticos, alto risco de desenvolver neoplasia maligna na
mama.
A decisão provocou corrida aos exames genéticos e intermináveis polêmicas, mas, pelo que se lê e ouve, estamos distantes de qualquer consenso, sequer de um debate racional. Como sempre, alvoroços opinativos se transformam em posturas sectárias e apriorísticas: “eu também faria, tem toda a razão” ou “que absurdo, ela deve ter tido razões ocultas para tomar essa decisão”. Assim é que não se vai muito longe. A verdade é que exames de mapeamento heredo-genético ainda estão em fase de pesquisas. Neste estado embrionário, bem poucas cidadãs podem se esclarecer ouvindo e lendo as discussões travadas na mídia.
Vamos voltar um pouco para tentar reconstituir as
razões, o contexto e os parâmetros científicos que costumam nortear decisões
terapêuticas.
Toda a ideia da epidemiologia clínica sempre foi tentar esclarecer e distinguir os fatores que expõem (com potencial para impactar negativamente a saúde) daqueles que protegem o sujeito (deixar o organismo menos vulnerável).
Como saber? Tenta-se estabelece-se uma linha de
risco. O risco é uma fronteira subjetiva, ainda que possa ser transformado em
índice matemático sob dados estatísticos. A saber, existem procedimentos
clínicos, nutritivos, hábitos de vida, e ambientais que protegem a pessoa,
assim como aqueles que a tornam mais vulnerável.
Então de onde emerge a subjetividade e toda a assim
chamada “arte” em medicina?
A medicina não é ciência stricto sensu, no máxima ciência operativa como alguns epistemólogos ousaram classificar. A arte mencionada se deriva da necessidade de ponderar cada caso em seu devido contexto de individualidade e peculiaridade. Isso torna as regras clínicas mais flexíveis. Alguns reclamam deste caráter relativizador que a medicina adota. Ainda bem que ele existe!
Na verdade, trata-se de um importante
esteio de segurança para que a pessoa enferma não seja reduzida a mero
protocolo.
Em outras palavras, todas as decisões terapêuticas:
do parto via cesariana ao transplante cardíaco, dependem pois de criteriosa
avaliação do médico, dos cuidadores, da família, da história pregressa, das
condições e contextos da pessoa enferma.
Se Angeline têm mais chances de desenvolver a
doença neoplasia mamária, e há um exame que detecta esta predisposição e
ponderadas todas as variáveis, ela junto com o marido, médicos, agentes da
saúde e família, tomou a decisão, esta deve ter sido acertada. Isso não
significa que outra pessoa, nas mesmíssimas circunstâncias e com o idêntico
exame em mãos, deva ou possa reproduzir o que a atriz acaba de fazer
Por que não?
Exatamente porque a análise de risco envolve
aspectos que estão para além da medicina e, às vezes, o que vale para um pode
não valer para outro. Quanto a mulher pode suportar a idéia da mutilação? Quais
os impactos psíquicos? Com que tipo de companheiro/família ela
poderá contar na fase que se chama convalescença? Ela sabe que resta uma chance
de 10% de que mesmo tendo se submetido ao procedimento pode desenvolver o
câncer? Sabe que podem haver complicações cirúrgicas, como aderências, má
cicatrização e infecções? Qual será a influencia da cirurgia no seu futuro, nos
projetos que desenvolve, nas atividades profissionais? E, por último, decerto o
mais importante, como lidará com a informação de que haviam chances de jamais
desenvolver o tumor maligno?
Para
compreender isso melhor será importante recuperar os esquecidos e quase
abandonados conceitos de predisposição e susceptibilidade. Não seria má idéia
que o público tivesse acesso aos textos do pai da medicina para entender isso melhor.
Sim senhores, uma medicina “antiga” como a hipocrática ainda pode nos indicar
caminhos e evitar trilhar nos desastres dos excessos de diagnósticos.
Polêmica
mas cabível, é a tese desenvolvida pelo médico americano Gilbert
Welch “Overdiagnosed”, livro que trás críticas razoavelmente fundamentadas
aos incontáveis abusos de técnicas da propedêutica armada (exames
laboratoriais). Welch, não descarta o valor do diagnóstico ou propõe
modelos alternativos para a saúde, mas enfatiza o questionamento à indústria
das doenças que o excesso de tecnologia costuma construir.
Em uma sociedade com características patofóbicas (pathos – paixão ou doença, phobos – medo) e alarmável por tudo, agravado pela velocidade on-line de informações impossíveis de seres processadas, nossa tendência é consumir procedimentos e seguir acriticamente o que se noticia como in e up-to-date.
Há uma moda em saúde
também.
Para desenvolver uma moléstia (complexo de alterações funcionais e morfológicas, de caráterevolutivo, que se manifestam no indivíduo submetido à ação de causas estranhas, contra as quais ele reage) é preciso “poder” desenvolve-la. Em termos práticos isso significa que só se existe um terreno genético há chances de desenvolvimento da patologia. Chances não significam certeza. São dados condicionais, não mandatórios.
Se soubéssemos de todas as nossas chances de adoecer, viveríamos melhor?
Para que alguém
adoeça, devem se mesclar condições suficientes, necessárias, sobretudo fatores
desencadeantes. Em geral são multifatoriais. Exemplo: uma crise de bronquite
alérgica pode afetar alguns sob três condições simultâneas: verão, muita
umidade e abuso no consumo de chocolate. Em outros (considerando que
o sujeito tenha a mesma predisposição genética e a mesmíssima patologia) só
desenvolverá seu potencial no outono, ar seco e a noite. Ainda há aqueles que
só precisam da decepção financeira para desencadear broncoespasmos. É esta
ampla, quase imponderável variabilidade que torna a medicina um campo
curiosamente inexato.
Voltando ao caso Jolie, é necessário prudência,
responsabilidade e cuidado. O risco é que, sem todos os dados, o cenário se
torne corredor de direção única, como aliás têm sido a epidemia de cirurgias
plásticas e bariátricas. Isso é particularmente importante neste caso, e, por
isso, trago o tema à tona. Questão de saúde pública. A tendência dos colonizados
é agir por cópia e a cópia costuma ser um equivoco. O que serve para Jolie pode
não servir para as outras mulheres e vice versa.
Qualquer decisão que envolva este grau de
radicalidade e intervenção, merece esmiuçamento e seria aconselhável
estar clinicamente amparada, de preferencia, por duas opiniões de equipes
médicas e transdisciplinares.
Uma vez formulada a decisão, aposte que essa foi a
melhor dentre todas as possibilidades sem esquecer que nada é inexorável.
Fonte:
Paulo Rosenbaum
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