Traduzido para 12 idiomas, mas ainda em busca de editora no
Brasil, o livro de Allen Frances “Saving Normal” (Salvando o normal, em
tradução livre) questiona o manual que é referência para psiquiatras do mundo nos
diagnósticos de transtornos mentais.
Para
Frances, dificuldades diárias ganharam nomes de distúrbios no DSM (Manual
Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais). Como resultado, uma legião
de pessoas usa remédios sem necessidade, tendência que, ele diz, tem influência
da indústria farmacêutica.
O
DSM 5, mais recente edição da “bíblia da psiquiatria”, é cercado de polêmicas,
e uma delas veio do Instituto Nacional de Saúde Mental (NHI), um dos principais
órgãos norte-americanos, que decidiu excluir de financiamentos as pesquisas que
se baseiam nas categorias do guia. Especialistas como Frances — diretor da
revisão da edição anterior a esta, o DSM IV — dizem que os critérios de
diagnósticos são “frouxos” e podem sofrer pressões de setores interessados.
O
senhor acredita num retrocesso do DSM 5 em relação do DSM IV?
Houve
pouca controvérsia no DSM IV (1994) porque ele rejeitou 92 de 94 sugestões de
novos diagnósticos. O DSM 5 (2013) é muito polêmico porque abriu as portas para
a irresponsável abundância de diagnósticos e de venda de remédios.
Na
sua opinião, novos transtornos foram incluídos sem necessidade no DSM 5? De
quem é a responsabilidade?
Sim,
estamos transformando os problemas diários em transtornos mentais e tratando-os
com comprimidos. Parte do problema é que o sistema de diagnóstico é muito
frouxo. Mas o principal problema é que a indústria farmacêutica vende doenças e
tenta convencer indivíduos de que precisam de remédios. Eles gastam bilhões de
dólares em publicidade enganosa para vender doenças psiquiátricas e empurrar
medicamentos.
Quais
seriam os exemplos desses excessos do manual?
Uma
tristeza normal se tornou “transtorno depressivo maior”; um esquecimento da
idade é “transtorno neurocognitivo leve”; birras usuais do temperamento
infantil se tornam “transtorno disruptivo de desregulação do humor”; exagerar
na comida virou “transtorno da compulsão alimentar periódica”; uma preocupação
de um sintoma médico é “transtorno de sintoma somático”; e em breve todos terão
“transtorno de déficit de atenção e hiperatividade” (TDAH) e tomarão estimulantes.
Quando
o psiquiatra Leon Eisenberg, considerado “o pai do TDAH”, se deparou com o
aumento do diagnóstico nos EUA, ele o chamou de “doença fictícia”. Qual é a sua
opinião?
O
TDAH ocorre em 3% das crianças, mas é diagnosticado em 11% de americanos e,
ridiculamente, em 20% de adolescentes homens. O remédio pode ser bom para
poucos e terrível se usado em muitos.
Quão
profundo pode ser o impacto de remédios desnecessários no comportamento desses
indivíduos?
Fazemos
um vasto e descontrolado experimento em nossas crianças, banhando seus cérebros
imaturos com produtos químicos fortes sem saber seus efeitos de longo prazo.
Pais precisam se tornar consumidores informados e proteger seus filhos.
A
indústria farmacêutica exerce alguma pressão sobre o grupo de trabalho
responsável pela revisão do DSM?
Ela
espera às margens e não faz pressão na revisão de diagnósticos. Mas tem
financiamento ilimitado e os melhores cérebros publicitários dedicados a
difundir a desinformação de que transtornos psiquiátricos são subdiagnosticados
e fáceis de diagnosticar. E apresenta comprimidos como solução.
Temos
dados científicos suficientes para embasar os diagnósticos?
Aprendemos
muito sobre o funcionamento do cérebro, mas até agora isso não ajudou um único
paciente. O cérebro é a coisa mais complicada que existe. A passagem da ciência
básica para a prática clínica é dolorosamente lenta, e não podemos nos apressar
na psiquiatria. Ainda não temos testes biológicos para definir doenças mentais,
mas isso não significa que não podemos ajudar aqueles que realmente precisam.
Como
balancear a crítica ao excesso de diagnóstico sem elevar o preconceito com os
doentes?
Enquanto
tratamos em excesso os que não precisam, vergonhosamente deixamos os doentes de
verdade ao léu. Temos ferramentas para ajudá-los a ser produtivos e ter
dignidade.
Quais
são as consequências disto?
Os
gravemente doentes terminam na rua, em prisões ou hospitais psiquiátricos
inadequados. Precisamos focar nos que estão doentes e proteger os que acham que
estão. Nos EUA, pessoas morrem mais por remédios prescritos do que de drogas
ilícitas.
Que
medidas sociedade, cientistas, autoridades e indústria farmacêutica poderiam
tomar?
Apertar
o sistema de diagnóstico; recapacitar médicos para os riscos, e não apenas os
benefícios de remédios; eliminar a propaganda de companhias farmacêuticas. É
uma batalha de Davi contra Golias, mas foi bem-sucedida contra a indústria do
tabaco.
Fonte:
http://oglobo.globo.com/
Nenhum comentário:
Postar um comentário