19 de out. de 2011

Estatuto Científico da Homeopatia

Empirismo na História da Ciência Médica:

Samuel Hahnemann e Claude Bernard1



SILVIO SENO CHIBENI



Departamento de Filosofia, Unicamp

P.O. Box 6110

13083-050 Campinas, SP

chibeni@unicamp.br

www.unicamp.br/~chibeni





Resumo: O principal critério filosófico empregado por Harris Coulter em sua extensa análise da
história da medicina (Divided Legacy, 4 vols.) é a distinção empirismo/racionalismo. Segundo o
historiador, todo o desenvolvimento da ciência médica, de Hipócrates até o século XX, exibe, de
forma implícita ou explícita, o confronto entre essas duas perspectivas epistemológicas. Elas teriam
desempenhado papel determinante na metodologia de investigação dos processos patológicos e
terapêuticos, bem como no estabelecimento das teorias médicas. No presente artigo examina-se
brevemente a adequação histórica e a fertilidade analítica da tese geral de Coulter nos casos
particulares daqueles que, segundo ele, teriam sido os principais expoentes do “empirismo” e do
“racionalismo” médicos, Samuel Hahnemann e Claude Bernard, respectivamente. Sugere-se, a
partir desse exame, que embora a percepção de Coulter da existência de um cisma na história da
medicina pareça correta, a divisão não radica na oposição empirismo/racionalismo, mas, entre
outros fatores, no tipo de evidência experimental considerada relevante para a medicina, na forma
em que são concebidas as relações entre a experiência e a teoria médica, e na natureza das hipóteses
sobre os mecanismos causais dos fenômenos patológicos e terapêuticos.



Palavras-chaves: Empirismo. Ciência médica. Realismo científico. Racionalismo. Homeopatia.
Samuel Hahnemann. Claude Bernard.



1. Introdução

Segundo o historiador da ciência contemporâneo Harris L. Coulter, a
medicina exibiria, desde seus primórdios, uma cisão entre duas vertentes, que se
antagonizam tanto quanto ao conhecimento básico acerca de processos vitais,
patológicos e terapêuticos como quanto à sua dimensão prática. Teríamos hoje

1 Uma versão inicial deste texto foi apresentada no X Encontro Nacional de Filosofia
da ANPOF (Grupo de Trabalho de Filosofia da Ciência), São Paulo, 29/9 a 3/10/2002.


um “legado dividido” na ciência médica, título de sua série de quatro substanciais
volumes sobre o assunto. Essa cisão seria marcada, antes de tudo, por um critério
epistemológico: a adesão implícita ou explícita ao empirismo ou ao racionalismo.
Já na Introdução do primeiro volume, porém, fica claro que a distinção que
Coulter pretende traçar não se apóia única e estritamente nesse critério filosófico.
Segundo o próprio Coulter, entre as características da vertente empirista estão,
por exemplo, a abordagem sintética, a visão cósmica ou holista do ser humano, o
vitalismo, o desinteresse pelas causas imediatas (proximate) das doenças, ou
mesmo a convicção de que elas estão fora de nosso alcance cognitivo, o desprezo
por hipóteses, a tese de que as ciências básicas (física, química) não têm relevância
direta para a medicina, a preocupação com os sintomas peculiares a cada enfermo
e, de um modo geral, a atenção minuciosa aos detalhes, uma visão humanitária da
profissão médica, etc. Por contraste, a vertente racionalista favoreceria a aborda-
gem analítica, a visão materialista ou redutivista do homem, a busca das causas
próximas das enfermidades e sua eleição como o alvo principal da intervenção
terapêutica, o apelo explícito e direto ao conhecimento físico e químico para
embasar essa busca e essa intervenção, o desprezo pelos detalhes e idiossincrasias,
com a conseqüente ênfase nos padrões gerais de adoecimento e cura, o enfoque
técnico da profissão médica e a frieza das relações médico-paciente, etc.

Evidentemente, esses são critérios que não coincidem com o critério epis-
temológico principal, nem dele derivam de modo direto. Essa observação por si
só não invalida a tese central de Coulter, a existência de uma cisão histórica geral
na medicina, mas indica que ela é mais complexa do que parece à primeira vista.

Para que se perceba melhor a intenção de Coulter, é útil indicar, além dos
conceitos, as classes que eles pretendem delimitar. O historiador situa do lado
empirista vários dos diversos escritos hipocráticos principais (os que, segundo ele,
seriam provavelmente do próprio Hipócrates (c. 460-377 a.C.)), Celso (séc. I
d.C.), Paracelso (1493-1541), Jan Baptista van Helmont (1578-1644), Thomas
Sydenham (1624-1689), Georg Stahl (1660-1734) e Samuel Hahnemann (1755-
1843), entre outros. Alguns dos expoentes da perspectiva racionalista cujas obras
são analisadas por Coulter são Galeno (130-200), François de le Boe Sylvius


(1614-1672), George Cheyne (1671-1743), Hermann Boerhaave (1688-1738),
Albrecht von Haller (séc. XVIII), William Cullen (1710-1790), John Brown
(1935-1788), François Magendie (1783-1855), Rudolf Virchow (1821-1902) e
Claude Bernard (1813-1878). De forma significativa, Coulter procura envolver
filósofos na discussão. Aristóteles e Descartes, por exemplo, são dados como im-
portantes fontes da vertente médica racionalista, enquanto que os céticos antigos
e Francis Bacon seriam referências filosóficas centrais para os teóricos empiristas
da medicina.

Não pretendo aqui, naturalmente, empreender um exame geral da tese e da
argumentação de Coulter, mas simplesmente verificar – e ainda assim de forma pré-
liminar – suas credenciais nos casos específicos de Samuel Hahnemann e Claude
Bernard. Essa escolha justifica-se, primeiro, por serem justamente esses cientistas
os que o próprio Coulter considera os principais expoentes das duas vertentes
médicas; segundo, pela inquestionável influência que tiveram no desenvolvimento
subseqüente da medicina, constituindo até hoje as referências teóricas dos defen-
sores das duas vertentes; terceiro, pela defesa filosoficamente bem informada que
ambos fizeram de suas abordagens; e, por fim, pelo fato de o debate sobre os
fundamentos científicos da homeopatia – a teoria médica criada por Hahnemann
– perdurar até nossos dias, suscitando acaloradas discussões que tocam diversos
tópicos de interesse para a filosofia da ciência. Argumento que a divisão apontada
por Coulter não radica – pelo menos nesses casos emblemáticos – na oposição
empirismo/racionalismo propriamente considerada. Sugiro, para ulterior análise,
que ela depende, entre outros fatores, do tipo de evidência experimental
considerada relevante para a medicina, da forma em que são concebidas as
relações entre a experiência e a teoria médica, e da natureza das hipóteses sobre
os mecanismos causais dos fenômenos patológicos e terapêuticos.



2. Empirismo e “Para-empirismo”

Como quase todo termo filosófico, empirismo tem sido usado em diversos
sentidos, que cumpre diferençar claramente em uma análise como esta. Primeiro,
há a acepção popular, com associações depreciativas, de um apelo cego, não siste-


2 Na Introduction à l’étude de la médecine expérimentale (IEME), após notar que a física e a
química já eram ciências constituídas, Bernard acrescenta: “Mais la médicine est encore
dans les ténèbres de l’empirisme, et elle a subit les conséquences de son état arrieré” (p.
77). Nos Principes de médecine expérimentale (PME) Bernard diz que para o médico
verdadeiramente digno do nome o empirismo deve ser “la cabane dont parle Descartes et
qui sert seulement à se tenir à l’abri pour ne pas coucher à la belle étoile, en attendant que
l’édifice scientifique soit construit” (p. 179). Os capítulos 4 e 5 desta obra contêm uma
longa discussão do empirismo, em diversas acepções do termo, e seu papel na ciência. Ver
também COULTER, 1977, p. 610-612.

mático à experiência. Críticas a essa forma de empirismo são recorrentes na
maioria dos cientistas médicos das duas vertentes de Coulter. Assim, por exemplo,
o “racionalista” Bernard não perdia a oportunidade de atribuir o que julgava ser o
“atraso” da medicina justamente ao “empirismo” com que vinha sendo
investigada.2 Mas também Hahnemann, o articulador máximo da concepção
empirista da medicina, reprovava energicamente não apenas o “empirismo” dos
curandeiros e leigos em geral, como também de seus próprios colegas:



Quando falo da descoberta metódica dos poderes medicinais, descoberta que ainda
precisamos fazer, não me refiro aos ensaios empíricos usualmente feitos nos
hospitais [...]. Tais ensaios empíricos casuais são, para dar-lhes a mais branda
qualificação, apenas loucuras arriscadas, quando não coisa pior. (HAHNEMANN,
1995, p. 259.)



Exibindo consciência da existência de uma noção filosoficamente
defensável de empirismo, Hahnemann chegou a cunhar um neologismo – “para-
empirismo” – para distinguir as duas noções: “Para-empirismo poderia designar o
demônio maligno, empirismo o bom gênio da experiência” (HAHNEMANN, 1995,
p. 522; ver também COULTER, 1977, p. 687). Está claro que este último é
simplesmente a tese epistemológica geral de que a fonte primordial do
conhecimento sobre o mundo exterior é a experiência. Para os propósitos da
ciência, porém, o que conta não é a experiência aleatória e cujo interesse esgota-se
em si mesma, mas aquela iluminada por alguma diretriz teórica consistente.
Ademais, essa experiência visa a contribuir para a consolidação ou retificação da
própria teoria. No caso da medicina, Hahnemann observou, a esse respeito, que


3 Amplo material sobre o papel da razão nas ciências naturais encontra-se, por exem-
plo, na segunda parte da IEME, intitulada justamente “Du raisonnement expérimental”
(ver, especialmente, as páginas 60 e 61). É justo observar, no entanto, que em outro lugar
desse livro Bernard se pronuncia em termos que poderiam, se tomados isoladamente,
fornecer algum suporte à sua classificação como “racionalista”: “Sans doute, j’admets que
les faits sont les seuls réalitées qui puissent donner la formule à l’idée expérimentale et lui
servir en même temps de contrôle; mais c’est à la condition que la raison les accepte. [...]

“o médico [...] requer uma teoria por guia, uma linha sobre a qual ordene suas
idéias e prática sistemática” (HAHNEMANN, 1995, p. 491).

Mas o empirismo no sentido filosófico próprio do termo foi admitido por
muitos dos grandes teóricos da medicina que Coulter situa na vertente “ra-
cionalista”. No caso de Claude Bernard, em particular, isso é meridianamente
claro. A ênfase no papel fundamental da experiência constitui um dos aspectos
dominantes do seu pensamento, a ponto de havê-lo destacado já no título de suas
principais obras teóricas: Introduction à l’étude de la médecine expérimentale (de 1865) e
Principes de médecine expérimentale (c. 1862-77, publicada em 1947). Para citar apenas
uma das incontáveis passagens relevantes, vejamos o que se lê à p. 29 deste
último livro (grifo de Bernard):



Vede se em física ou química alguém hoje ainda se refere à autoridade de sistemas e
doutrinas. A única autoridade que se invoca é sempre a demonstração experimental. A
medicina experimental é a que procederá desse modo, proclamando como
verdadeiro não aquilo que pertence a tal ou qual sistema, tal ou qual doutrina, ou à
opinião desse ou daquele homem, mas o que seja provado por uma experimentação
metodicamente instituída. Essa a medicina experimental científica, como deverá ser
compreendida depois de mim, a que tende a constituir-se tomando por base a
fisiologia experimental. A medicina experimental terá, pois, o caráter comum a
todas as ciências experimentais, esvaindo-se, assim, todos os sistemas e doutrinas
que reinaram na medicina nas diversas épocas de seu estado pré-científico.



É curioso que isso tudo não tenha dissuadido Coulter de continuar consi-
derando Bernard “racionalista” – e note-se que o próprio Coulter transcreve pás-
sagens de idêntico teor (1977, p. 612-613; citações de IEME). É claro que, sob
outros aspectos fundamentais, Bernard insistiu no caráter racional da ciência
médica, mas isso de modo algum é feito com exclusão de sua base experimental.3


En un môt, dans la méthode expérimentale comme partout, le seul critérium réel est la raison”
(p. 88; ênfase no original).

4 Note-se a impressionante proximidade de conteúdo e forma com os textos
epistemológicos de Hume. Veja-se, por exemplo, esta passagem: “No object ever
discovers, by the qualities which appear to the senses, either the causes which produced it,
or the effects which will arise from it; nor can our reason, unassisted by experience, ever
draw any inference concerning real existence and matter of fact.” (HUME, 1999, 4.6; ver
também HUME, 2000, 1.3.6, passim.)

Quanto a Hahnemann, é igualmente patente que seus principais textos
teóricos ressaltam a importância geral da experiência na medicina – e sobre isso
Coulter corretamente insiste –, em termos muito próximos aos que empregaria
Bernard algumas décadas depois. Um artigo fundamental, publicado em 1805,
por exemplo, intitula-se justamente “A medicina da experiência” (HAHNE-
MANN, 1995, p. 435-476). E o eloqüente prefácio da segunda edição do Organon
(1918) é inteiramente dedicado ao tema. Em seu segundo parágrafo lemos: “A
verdadeira arte da cura é, em sua natureza, uma ciência pura da experiência,
podendo e tendo de repousar sobre fatos claros e fenômenos sensíveis.”

Logo em seguida a esse trecho aparece uma das muitas críticas às teorias
médicas tradicionais, por conta justamente de seu caráter a priori. Essa crítica
inicia com um parágrafo rico de considerações epistemológicas diretamente
relevantes ao assunto presentemente em exame:



A razão desassistida [i.e. sem a experiência] não pode conhecer nada por si própria
(a priori); não pode desenvolver a partir de si nenhuma concepção da natureza das
coisas, de causas e efeitos. Cada uma de suas conclusões sobre o atual tem sempre
de estar baseada em percepções sensíveis, sobre fatos e experiências, se quiser
elicitar a verdade. Se, em suas operações, desviar-se um único passo do guia da
percepção, perder-se-á na ilimitada região da fantasia e da especulação arbitrária,
que é a mãe da perigosa ilusão e da absoluta nulidade.4



Hahnemann prossegue, estendendo sua tese à física e à química:



Nas ciências puras da experiência, na física, na química e na medicina, a razão
meramente especulativa não pode, conseguintemente, ter nenhuma voz. Nelas,
quando age sozinha degenera em especulação e fantasia ocas, produzindo hipóteses
fortuitas [...].


Chega, finalmente, ao alvo visado:



Tal tem sido, até hoje, o esplêndido jogo de malabarismo da assim-chamada
medicina teórica, na qual concepções a priori e sutilezas especulativas deram origem
a diversas escolas enfatuadas, que apenas exibiram o que cada um de seus
fundadores havia sonhado acerca de coisas que não podem ser conhecidas, e que
não tinham nenhuma utilidade para curar doenças. [...] Desses sistemas sublimes,
que pairavam muito além de toda experiência, a prática médica nada poderia obter
para o tratamento real. [...]



O prefácio prossegue ainda por mais uma página, detalhando e aprofun-
dando a crítica filosófica ao enfoque apriorístico na medicina.

Havendo, assim, um compromisso forte com o empirismo, no sentido
filosófico original do termo, da parte dos principais representantes das duas as
vertentes que Coulter pretende diferençar, e sendo o alinhamento ou não com o
empirismo o critério central evocado pelo historiador para traçar a distinção,
parece claro que, ou ela é ilusória, ou deve ser traçada segundo outros critérios.

Como indicado na seção precedente, o próprio Coulter fornece, ao longo
da obra, diversos outros traços das duas vertentes, que aparentemente considera
secundários. O que aconteceria se a distinção tivesse de ser feita apenas com base
neles? As extensões das duas classes de cientistas continuariam as mesmas?
Teriam os novos critérios densidade filosófica suficiente para continuar
interessando a um filósofo da ciência, ou confinariam a distinção a algum
domínio técnico da medicina?

Parece claro que tais questões não admitem respostas simples, requerendo
um reexame geral do vasto material histórico trabalhado por Coulter e,
eventualmente, de fontes complementares. Evidentemente, isso não cabe no
escopo deste trabalho. Apresentarei, no entanto, algumas sugestões preliminares
de como preservar a distinção extensional de Coulter, com base em fatores de
natureza filosófica, ou de interesse para a filosofia da ciência.




3. A Natureza da Base Empírica e o Papel das Ciências “Auxiliares” na
Medicina

Um primeiro fator que parece de fato estar em jogo na disputa examinada
por Coulter é a questão dos tipos de experiência considerados relevantes para o
embasamento da teoria e prática médicas. Essa questão envolve também a do
papel das ciências fundamentais – a física e a química – na medicina.

Na vertente que Coulter chama de “empirista” (aspas serão usadas de
agora em diante para ressaltar que o termo não está sendo usado no sentido
filosófico fundamental) a evidência empírica dada como mais relevante para a
fundamentação teórica e, por conseqüência, para o estabelecimento de uma ação
terapêutica eficaz, é aquela sobre os sintomas patológicos e sobre os efeitos das
substâncias medicinais sobre o organismo humano. Hahnemann queixava-se, já
em seus textos iniciais, da quase total ausência de estudos experimentais
sistemáticos sobre a ação direta das drogas nos seres humanos sãos e enfermos.
Dedicou-se, assim, com grande energia e por toda a vida a esse tipo de
investigação empírica. Suas contribuições nesse campo foram reconhecidas como
originais e importantes até mesmo por seus opositores. A teoria terapêutica que
desenvolveu, a que chamou homeopatia, apóia-se, segundo ele próprio salientou
quando de sua apresentação inicial, unicamente no conhecimento detalhado
desses fenômenos (ver seção 5, adiante). Os fenômenos físicos e químicos, quer
os que embasam as respectivas disciplinas, quer aqueles que dizem respeito
especificamente aos organismos vivos, não cumprem papel determinante nessa
teoria (embora não sejam inteiramente ignorados).

Já no caso da vertente dita “racionalista” esta última classe de fenômenos é
alçada a posição de destaque; e as próprias teorias químicas e físicas são evocadas
explicitamente na elaboração e confirmação de um conjunto de hipóteses
fisiológicas sobre os mecanismos de funcionamento normal do organismo e de
sua perturbação patológica. A física e a química são, assim, classificadas de
“ciências auxiliares” da medicina. O objetivo médico é agora identificar e intervir


5 Cahier de Notes, p. 154, apud COULTER, 1977, p. 627. Note-se a apropriada referência
a Descartes neste ponto; Coulter argumenta, aliás, que o Tratado do Homem teria exercido
poderosa influência sobre toda a vertente médica que culmina em Bernard.

sobre as causas próximas das enfermidades. O ponto é exposto claramente por
Bernard nesta passagem:



Com efeito, um e outro [o físico e o fisiologista] elegem como objetivo comum remontar à
causa próxima dos fenômenos que estudam. Ora, o que chamamos de causa próxima
[prochaine] de um fenômeno não é senão a condição física e material de sua
existência ou de sua manifestação (IEME, p. 106).



O contato entre as ciências básicas e a medicina não se limita, segundo
Bernard, ao plano metodológico. Há, também, uma identidade no plano onto-
lógico fundamental: “um organismo vivo não passa de uma máquina maravi-
lhosa”, de natureza físico-química (IEME, p. 104). Por conseguinte, as próprias
leis fundamentais dos processos biológicos são leis físico-químicas: “Aqueles que,
por encantamento, acham que as leis físicas não valem no organismo são maus
pensadores. [...] Mas então, estando esse ponto estabelecido como princípio,
todos os atos vitais estarão reduzidos a movimentos mecânicos (Descartes)”.5

Uma conseqüência disso é a mais absoluta rejeição do vitalismo:



Disso resulta que o corpo inerte, subordinado a todas as condições cósmicas,
encontra-se encadeado a todas as suas variações; ao passo que o corpo vivo
permanece, ao contrário, independente e livre em suas manifestações. Este parece
animado por uma força interior [força vital] reguladora de todos os seus atos, e que
o livra da influência das variações e das perturbações físico-químicas ambientes. [...]
Refletindo-se, porém, logo se perceberá que essa espontaneidade dos corpos vivos
não passa de simples aparência, sendo o resultado de um certo mecanismo, num
meio completamente determinado; de modo que, no fundo, seria fácil provar que o
comportamento dos corpos vivos, assim como o dos inorgânicos, é dominado por
um determinismo necessário, que os liga a condições de ordem puramente físico-
química.” (IEME, p. 101-102; ver também PME, p. 202 ss.)



A insistência no determinismo é levada ao extremo por Bernard, que
chegou mesmo a colocá-lo como condição necessária a qualquer ciência:


6 IEME, p. 109; toda a seção 5 do cap. 1 da primeira parte desse livro é dedicada ao
assunto; ver também p. 87-89. O determinismo é também um dos temas dominantes de
PME; ver, por exemplo, p. 205-264.

7 “Dans la recherche de la vérité, au moyen de cette méthode [la méthode
expérimentale], le sentiment a toujours l’initiative, il engendre l’idée a priori ou l’intuition;
la raison ou le raisonnement développe ensuite l’idée et déduit ses conséquences logiques.
Mais si le sentiment doit être éclairé par les lumières de la raison, la raison à son tour doit
être guidée par l’expérience” (IEME, p. 60-61).

8 Até mesmo Descartes, dado por Coulter como uma das principais fontes de
inspiração da vertente “racionalista” na medicina, efetivamente reconhece que, no
conhecimento do mundo físico, sua via racionalista pura praticamente se esgota com a
obtenção, na segunda parte dos Principes de la Philosophie, das três leis mecânicas básicas e

É preciso admitir, como axioma experimental, que nos seres vivos, tanto como nos
corpos brutos, as condições de existência de qualquer fenômeno estão deter-
minadas de maneira absoluta. [...] A negação dessa proposição seria, simplesmente,
a negação da própria ciência.6

Mas as questões do vitalismo e do determinismo não são assunto principal
do presente ensaio. O importante aqui é que, dada essa visão ontológica do ser
humano, era inescapável a Bernard sustentar que a medicina seria reduzida à
fisiologia (da qual, aliá, se orgulhava de ser o fundador), e esta, por sua vez, se
reduziria, em última instância, à química e à física.

Quando Coulter associa essa perspectiva médica ao racionalismo parece
que ele está focalizando a atenção apenas na articulação racional necessária para
ligar o conhecimento físico e químico com os processos fisiológicos, patológicos
e farmacológicos. É claro que a razão tem um papel essencial aqui. Mas não é o
papel de fundamento, senão o de instrumento lógico, como ressalta aliás o
próprio Bernard.7 Não haveria, pois, justificação para classificar de “racionalista”
a vertente. Cumpre considerar, ademais, que o conhecimento físico e químico
básico é, a seu turno, de natureza empírica. Depois, que sua conexão com a teoria
médica não prescinde de experimentos específicos em anatomia, fisiologia,
patologia fisiológica, citologia, bioquímica, etc., como salientaram os represen-
tantes da vertente, que geralmente se entregaram eles próprios a esse tipo de
trabalho experimental.8 E, por fim, que o trabalho teórico desenvolvido dentro


das sete regras de colisão que lhes são conseqüentes. Ver CHIBENI, 1993 e LOPARIC,
1997.

9 Note-se, aliás, que Hahnemann destacou isso no próprio título da primeira edição de
sua obra fundamental: Organon der rationellen Heilkunde. A partir da segunda edição, o título
foi alterado para Organon der Heilkunst. Para uma análise erudita desses títulos, ver
DEAN, 2001. Esse artigo contém uma das mais lúcidas análises do contexto histórico e
conceitual em que trabalhou Hahnemann.

da vertente “empirista” evidentemente também não pode prescindir da análise
racional, no plano da estruturação lógica.9

Para concluir a seção, é útil registrar uma das declarações típicas de
Hahnemann sobre o papel do conhecimento físico e químico na medicina:



Mas embora todas as partes componentes da estrutura humana sejam encontradas
em outras partes da natureza, agem conjuntamente, em sua união orgânica com
vistas ao completo desenvolvimento da vida e ao desempenho das outras funções
do homem, de forma tão peculiar e de certo modo anômala (o que só pode ser
definido pelo termo vitalidade) que essa relação peculiar (vital) das partes umas com
as outras e com o mundo externo não pode ser julgada ou explicada por nenhuma
outra regra, fora as que ela própria fornece; e portanto por nenhuma das leis
conhecidas da mecânica, estática ou química. (HAHNEMANN, 1995, p. 489.)



Na seção 5 este trecho voltará a ser comentado, quanto a outro aspecto
importante.



4. O Realismo Científico na Medicina

Minha segunda sugestão a respeito dos reais fatores envolvidos na cisão na
história da medicina é a de que, em geral, ou ao menos no caso da dupla
Hahnemann/Bernard, há uma diferente postura quanto ao problema episte-
mológico do alcance das inferências a partir da experiência. Trata-se, pois, da dis-
cussão, tão proeminente na filosofia moderna, acerca da extensão ou limites do
conhecimento, e que recebeu contornos mais específicos na filosofia contem-
porânea, em termos do problema do chamado realismo científico.

De forma simplificada, o realismo científico é a tese epistemológica de
que, de alguma forma, a cognição humana não está confinada aos fenômenos,


10 Ver CHIBENI, 1993 para um exame da discussão pioneira feita por Descartes. Para
uma análise geral do debate, ver CHIBENI, 1997b, cap. 2.

mas pode alcançar aspectos inobserváveis da realidade, em particular aqueles que
usualmente comparecem, a título de hipóteses, na maioria das teorias científicas.
Embora essa seja a posição do senso-comum científico, sua justificação rigorosa
tem ocupado os filósofos desde o início da ciência moderna.10

É importante distinguir aqui dois tipos de teorias científicas, fenomenológicas
e explicativas. Embora seja uma distinção filosófica, foi traçada com especial
clareza por Einstein, em um texto de 1954. Nas teorias fenomenológicas, ou “de
princípios”, diz Einstein, “os elementos que formam sua base e ponto de partida
não são construídos hipoteticamente, mas descobertos empiricamente” (228),
limitando-se a estabelecer correlações superficiais entre os fenômenos. O
exemplo que fornece de teoria desse tipo é a termodinâmica. Como se sabe, ele
procurou desenvolver sua teoria especial da relatividade nos mesmos moldes
fenomenológicos dessa teoria, porque, segundo sua apreciação, isso traz maior
“perfeição lógica e segurança de fundamentos” (ibid.), embora às expensas de
poder explicativo. Já as teorias explicativas, ou “construtivas”, “procuram
construir uma imagem dos fenômenos mais complexos a partir dos materiais de
um esquema formal relativamente simples” (ibid.), que geralmente transcende o
nível dos fenômenos, e é introduzido como hipótese, na tentativa de fornecer
uma explicação causal para os fenômenos. Os exemplos abundam na ciência;
Einstein menciona, em especial, a teoria cinética; sua generalização, a mecânica
estatística, é justamente a teoria construtiva que trata dos mesmos fenômenos
descritos pela termodinâmica.

A forma mais radical de anti-realismo científico propõe que a ciência se
limite a teorias fenomenológicas. Berkeley e Mach parecem ter defendido essa
posição. Variantes mais moderadas admitem teorias construtivas, porém aquilo
que nelas transcende os fenômenos é de algum modo desqualificado enquanto
conhecimento objetivo acerca do mundo.

No âmbito da presente discussão, o que está em jogo é, principalmente, se
as teorias médicas devem ficar restritas ao nível fenomenológico ou ultrapassá-lo


11 Num outro trabalho (CHIBENI, 1997a) mantenho que a tendência atual de
qualificar diversas posições anti-realistas científicas de “empirismo” – como no famoso
livro de van Fraassen (1980) – é enganosa, pois o empirismo, enquanto doutrina sobre a
fundamentação do conhecimento, não conduz necessariamente a uma posição anti-realista
científica, embora naturalmente a favoreça.

12 Ver DUTRA, 1996, 1999 e 2001, cap. 4. Em síntese, o que Dutra defende é que Ber-
nard teria sido um realista científico a respeito de teorias, mas não a respeito de entidades.
Acredito, porém, que essa interpretação peculiar mereceria investigação ulterior.

e, neste último caso, como podemos determinar se o que afirmam acerca de uma
suposta realidade extra-fenomênica é verdadeiro, ou ao menos aproximadamente
verdadeiro.

Coulter certamente vislumbrou esse problema fundamental, mas não o
expôs em termos filosoficamente precisos. Aparentemente, ele foi vítima de uma
confusão comum na literatura contemporânea sobre o realismo científico:
identificar, inclusive na denominação, o anti-realismo científico com o empirismo
e, por conseguinte, o realismo com o racionalismo.11

De um modo geral, os teóricos da vertente “racionalista” de Coulter tem-
deram quase sempre a uma posição otimista quanto à extensão do conhecimento
médico além do nível fenomênico; ou seja, exibiram afinidade com o realismo
científico. Talvez isso não seja surpreendente, dada a impressão generalizada
entre os cientistas de que a ciência básica moderna caminha a passos firmes na
descoberta da verdade acerca da realidade material, mesmo em seus aspectos
inobserváveis. Como nessa vertente o conhecimento médico é entendido derivar,
em larga medida, do conhecimento básico da física e da química, é natural esperar
que ele partilhe de sua segurança e alcance. Aliás, está aí boa parte da motivação
para a freqüente atribuição de cientificidade à abordagem “racionalista”, e a
conseqüente negação de cientificidade à abordagem rival. Quanto à posição
específica de Bernard, não me deterei sobre ela, visto existirem análises recentes
bem fundamentadas sobre o assunto.12

Já os teóricos “empiristas” em geral inclinaram-se para o anti-realismo, co-
mo testemunha sua conhecida aversão a hipóteses sobre os mecanismos causais
“invisíveis” das doenças e da ação dos medicamentos. Thomas Sydenham,


13 Apud COULTER, 1977, p. 188. Note-se que Sydenham era amigo do pai do
empirismo moderno, John Locke – que, aliás, também era médico. Parece que se
influenciaram mutuamente de forma expressiva. Hahnemann, a seu turno, refere-se a
Sydenham com admiração (ver Organon, parágrafo 81).

influente teórico “empirista” da medicina no século XVII, por exemplo, afirmou:
“Todo nosso conhecimento é grosseiro e bruto, versando apenas sobre a casca
exterior das coisas que queremos conhecer, estabelecendo apenas, em seu nível
máximo, como elas são, mas sem de nenhum modo indicar [guessing] por que são
assim”.13

Passagens de teor semelhante são freqüentes nos escritos de Hahnemann,
especialmente nos iniciais, como veremos na próxima seção.



5. Hahnemann, o Vitalismo e os Limites do Conhecimento Médico

A terceira e última sugestão que farei acerca dos traços que contribuiriam
para a delimitação das duas vertentes da medicina diz respeito à natureza das
hipóteses introduzidas com o objetivo de explicar os fenômenos vitais, patoló-
gicos e terapêuticos, bem como as leis fenomenológicas pelas quais se expressam.
Mais especificamente, em consonância com o fator apontado na seção 3, os
pensadores “racionalistas” em geral procuraram introduzir explicações que
postulam mecanismos físico-químicos, ou microbiológicos (interpretando-os de
forma realista, conforme sugerido na seção precedente). Já aqueles que Coulter
qualifica de “empiristas” favoreceram muitas vezes explicações de tipo vitalista.

Mas parece surgir aqui uma tensão interna na análise empreendida neste
artigo, pois o flerte com o vitalismo conflita com a apontada tendência anti-
realista dos “empiristas”. Uma força vital ontologicamente autônoma não estaria
em melhores condições de receber confirmação empírica do que as hipóteses
sobre a constituição química, física e biológica microscópica do corpo humano e
das substâncias patogênicas e medicinais.

Esse ponto é importante, e mereceria um exame mais extenso e aprofun-
dado do que o que cabe no âmbito do presente trabalho. Aqui me limitarei a
indicar que essa tensão de fato existe no caso específico de Hahnemann, e a


sugerir, nas Conclusões, uma conseqüência disso para a tentativa de encontrar
contornos conceituais precisos para as classes médicas de Coulter.

Retornando ao artigo de Hahnemann citado no final da seção 3, intitulado
“Sobre o valor dos sistemas especulativos em medicina” (1808), deve-se notar
que um dos aspectos intrigantes da posição vitalista nele proposta é que ela não
conduz às formas metafísicas usuais de vitalismo. O autor critica severamente, logo
após o trecho citado, o Archeus de van Helmont e a alma animal de Stahl como
exemplos de “especulações metafísicas, místicas e sobrenaturais, concebidas por
visionários ociosos e auto-suficientes” (p. 490-491).

Parece estarmos aqui diante de um esboço interessante de uma posição
não-redutivista de tipo funcionalista, não-substancialista, análoga a certas
interpretações contemporâneas acerca da natureza da mente. Nessa interpretação
a posição de Hahnemann se torna compatível com o anti-realismo, que ele adota
e mesmo defende explicitamente em toda a série de textos anteriores ao Organon.
Isso é bem visível já no pioneiro “Ensaio sobre um novo princípio para
determinar o poder curativo das drogas, com uma breve inspeção dos até aqui
empregados”, de 1796. É nele que Hahnemann aponta a precariedade das
inferências acerca da ação medicinal das substâncias a partir de sua aparência, sua
composição química, etc., propondo, no lugar disso, o método dos experimentos
diretos (ou “puros”, como dizia) com seres humanos. Já aparece também ali, em
forma rudimentar, o princípio fenomenológico básico da homeopatia. Outro
texto importante que corrobora o que está sendo sugerido aqui é “A medicina da
experiência”, de 1805.

Tais textos surpreendem o leitor de Hahnemann ordinário, que tenha o
Organon ou outros textos posteriores a ele como referência, pela total ausência de
qualquer extensão explicativa dos princípios fenomenológicos básicos homeo-
páticos, quer por meio da força vital ou de qualquer outra noção extra-empírica.
Vejamos algumas passagens típicas. Voltando ao ensaio de 1808, nele Hahne-
mann faz uma crítica contundente aos sistemas médicos vigentes, observando
que os fisiologistas e patologistas que os defendem “colocaram a essência da arte me-
dica, bem como seu maior orgulho, na explicação até mesmo do inexplicável” (HAHNE-


MANN, 1955, p. 489; itálicos do autor). Acrescenta logo depois que eles alimen-
tam “a vã fantasia de que o objetivo da profissão médica é explicar tudo” (p. 490, destaque
no original). No texto de 1805, após ressaltar que “a medicina é uma ciência de
experiência; seu objetivo é erradicar as doenças por meio de medicamentos”,
Hahnemann comenta:



Essa arte, tão indispensável à humanidade sofredora, não pode, portanto,
permanecer encerrada nas profundezas insondáveis das especulações obscuras, ou
perder-se no vazio ilimitado das conjeturas. Há de ser acessível, facilmente acessível a
nós, ficando dentro da esfera de nossas faculdades perceptivas externas e internas.
(HAHNEMANN, 1995, p. 439; destaque no original.)



Ocorre, porém, que já no Organon, cuja primeira edição é de 1810,
Hahnemann começa a se inclinar, embora ainda de forma calculada, na direção de
uma força ou princípio vital com ares de um ente metafisicamente autônomo.

Em um par de artigos recentes, analisei, quanto às questões filosóficas que
estão sendo discutidas aqui, esse livro de Hahnemann, que é sua principal obra
teórica. No primeiro artigo, voltado para o debate sobre a cientificidade da
homeopatia (CHIBENI, 2001), procurei mostrar que Hahnemann distinguiu
claramente dois níveis na teoria homeopática exposta no Organon, um
fenomenológico e outro explicativo ou “construtivo”, tendo argumentado
fortemente pela primazia epistêmica e autonomia científica do primeiro deles.
Assumi, sem entrar no mérito da questão, que Hahnemann descobriu uma classe
de fenômenos vitais, patológicos e terapêuticos especiais, os fenômenos homeo-
páticos. Suas investigações desses fenômenos conduziram-no à identificação de
um conjunto de leis fenomenológicas, a que conferiu estruturação típica de uma
teoria científica completa. É essa teoria fenomenológica que, segundo sua
apreciação explícita, trazia em si o que há de mais concreto no novo corpo de
conhecimento. Ademais, enfatizou que era dela, e somente dela, que dependia a
terapêutica homeopática. No parágrafo 27 do Organon Hahnemann enuncia de
forma sucinta o princípio fundamental de sua teoria médica: “Segue-se que, em
qualquer caso particular, uma doença pode ser destruída e removida da forma
mais segura, completa, rápida e permanente apenas por um medicamento capaz


14 Parágrafo 28, destaque do original. Observações semelhantes podem ser encontra-
das também nos parágrafos 1, 6, 54, 70, 100 e 144, entre outros.

de fazer um ser humano [sadio] sentir uma totalidade de sintomas mais completa-
mente similares à doença”.

Em certas interpretações divide-se esse princípio em três: a lei dos seme-
lhantes, a da totalidade dos sintomas e a da experimentação nos sãos. Essa divi-
são me parece artificial. Qualquer que seja o caso, porém, o importante aqui é
notar que o princípio tem caráter puramente fenomenológico, independendo total-
mente das questões de como e por que os medicamentos agem do modo
proposto. Logo em seguida Hahnemann acrescenta:



Uma vez que essa lei natural de cura é confirmada em todos os experimentos
objetivos e experiências autênticas do mundo, está estabelecida como um fato.
Explicações científicas de como ela funciona são de pouca importância, e vejo pouco
valor em tentar fornecer alguma.14



Já no parágrafo 29, porém, Hahnemann começa a introduzir sua teoria
explicativa. Mas é importante notar que antes ele adverte que essa explicação
“mostra-se como a mais provável, porque se funda na experiência” (par. 28).
Hahnemann não atribui, pois, à sua teoria o estatuto de verdade absoluta, mas
apenas o de uma teoria provável, subsidiária à teoria fenomenológica.

Essa teoria explicativa é, como se sabe, centrada na noção de força vital.
Com ela Hahnemann procurou fornecer explicações sui generis tanto para os
processos vitais e patológicos, como para a curiosa ação dos medicamentos
homeopáticos. Foge ao escopo do presente artigo dar detalhes sobre essa intri-
gante teoria. No segundo dos referidos artigos (CHIBENI, 2001-2), procurei iden-
tificar algumas das razões que podem ter levado Hahnemann a optar por desen-
volver seu trabalho teórico ao longo dessa linha, ao invés de buscar explicações
para os fenômenos homeopáticos na química ou na física de seu tempo.

Deve-se ainda observar que quando Hahnemann avalia que sua teoria é a
mais provável, “porque se funda na experiência”, não está ingenuamente dizendo
que ela recebe apoio indutivo direto, como em princípio poderia ser o caso da


teoria fenomenológica. O princípio da caridade, bem como o contexto geral da
obra, recomenda que entendamos isso apenas em termos do acordo das predições
teóricas com os fatos observados. É claro que mesmo essa interpretação suscita
problemas factuais e filosóficos de longo alcance, que não cabe examinar aqui.

É curioso que quando se percorre o Organon na ordem crescente dos
parágrafos observa-se um distanciamento gradual dos fundamentos empíricos,
valorizados em seu início, com a sofisticação crescente das hipóteses sobre
entidades e mecanismos inobserváveis. Indo além do Organon, essa tendência se
acentua, principalmente na obra sobre as Enfermidades Crônicas (1828, 1830), na
qual Hahnemann desenvolve a teoria dos miasmas, já esboçada no Organon.
Adentram-se aí profundezas metafísicas que contrastam penosamente com a
austeridade epistemológica dos primeiros escritos de Hahnemann.

Houve, pois, uma notável modificação das posições filosóficas e científicas
de Hahnemann ao longo do tempo. Mesmo com todas as ressalvas feitas no
início do Organon, acerca da prioridade epistêmica dos princípios homeopáticos
de tipo fenomenológico, e do caráter meramente subsidiário das tentativas de
explicação, por meio de hipóteses apenas prováveis, é difícil encobrir a sensação
de que o cientista acabou, por fim, envolvendo-se tanto com tais hipóteses que o
seu vigor anti-realista declinou, quase ao ponto de desaparecer.



6. Conclusões

Certamente muito mais pesquisa histórica e filosófica, motivada por consi-
derações do tipo das que nortearam este artigo, será necessária para confirmar e
tornar mais precisas, ou eventualmente refutar, as conclusões e sugestões prelimi-
nares apresentadas aqui. O que parece resultar de modo mais seguro da presente
análise é que a tese central de Harris Coulter, de que o cisma multimilenar na
história da medicina tem origem na adoção de uma perspectiva empirista ou
racionalista quanto aos fundamentos e métodos da ciência médica, não pode ser
mantida sem uma ulterior argumentação. Essa conclusão resulta do exame das
posições filosóficas daqueles que, segundo o próprio historiador, teriam sido os
representantes máximos das duas vertentes, Hahnemann e Bernard, respectiva-


mente. Há evidência textual de que ambos os cientistas defenderam explicitamente
o empirismo, na acepção filosófica própria do termo. Assim, se a cisão na história
da medicina não for meramente ilusória – e a admirável obra de Coulter convida,
apesar da referida restrição, a julgar que não é –, deverá radicar em algum outro
fator, ou conjunto de fatores.

A parte positiva deste trabalho consistiu em elaborar, de forma preliminar,
algumas sugestões acerca de que fatores seriam esses. O primeiro deles diria
respeito à natureza mesma da base empírica da medicina. Na vertente “empirista”
de Coulter, a experiência relevante é, preponderantemente, aquela relativa aos
sintomas patológicos e à ação direta das substâncias tóxicas ou medicamentosas
sobre o homem. Esse conhecimento empírico é, então, sistematizado em corpos
teóricos de natureza fenomenológica, abrindo-se, assim, mão, em grande parte,
do ideal de explicação dos fenômenos e leis fenomenológicas. Já na vertente
“racionalista”, o conhecimento médico é suposto assentar, em última instância,
na física e na química. Assim, a base experimental da medicina incluiria, como
elemento essencial – embora não exclusivo – fenômenos físicos e químicos, por
um lado, e por outro fenômenos que ajudem a estabelecer a redução teórica da
fisiologia às ciências básicas.

O segundo fator de divergência sugerido liga-se à questão epistemológica
do realismo científico. De um modo geral, os pensadores médicos que Coulter
chama de “racionalistas” exibem uma maior afinidade com a posição realista. Isso
parece estar associado ao referencial teórico em que trabalham, marcado pelo das
ciências básicas, incontestavelmente bem sucedidas e ordinariamente interpre-
tadas de modo realista. Por outro lado, os “empiristas” em geral propendem ao
ceticismo quanto ao valor das incursões além do nível empírico, priorizando, por
isso, as investigações experimentais diretas dos sintomas mórbidos e da ação das
substâncias sobre o organismo vivo.

Por fim, o terceiro fator a contribuir para o cisma médico seria a natureza
das hipóteses explicativas para os fenômenos vitais, patológicos e terapêuticos.
Mais uma vez, o referencial dos “racionalistas” os conduz, de forma típica, a pos-
tularem mecanismos causais inobserváveis de tipo físico, químico ou micro-


biológico. Já os teóricos que Coulter situa na classe “empirista” freqüentemente
flertam com explicações vitalistas. Isso introduz, naturalmente, uma tensão com
sua sugerida atitude anti-realista. Na última seção deste trabalho analisou-se tal
tensão no caso específico de Hahnemann. A avaliação da possível conclusão de
que esse cientista (e eventualmente outros da mesma vertente) conviveu com
inconsistências filosóficas requereria mais investigação. Dado, porém, o fato de
que as tendências conflitantes em seu pensamento exibem uma evolução histórica
marcante – enquanto o anti-realismo declina, as especulações vitalistas se forta-
lecem –, essa conclusão não parece ser inteiramente segura.

Para os propósitos historiográficos e filosóficos que estiveram no cerne do
presente artigo, o que mais importa é que essa tensão filosófica salienta a
complexidade extrema da tarefa empreendida por Coulter, de delimitar
conceitualmente as duas classes de teóricos da medicina. Se os três critérios
sugeridos aqui aparentemente não se encontram tão sujeitos como o dele a
chocar-se com contra-exemplos, não podem, a seu turno, ser entendidos como
exatamente coincidentes, quanto à sua extensão. A moral possível parece ser a
constatação, familiar, aliás, para o filósofo contemporâneo, de que no mundo
natural ou científico classes são, afinal de contas, entidades vagas.



Abstract: Harris Coulter’s extensive analysis of the history of medicine (Divided Legacy, 4 vols.)
is guided throughout by the philosophical distinction between empiricism and rationalism.
According to Coulter, the whole development of medical science, from Hippocrates to the 20th
century, is marked by the implicit or implicit confrontation of these two epistemological perspectives.
They would have played a determining methodological role in medical research and in the
development of medical theories. This article examines briefly the historical adequacy and analytic
fertility of Coulter’s thesis, in the case of those who, according to him, would have been the main
exponents of “empiricism” and “rationalism” in medicine, Samuel Hahnemann and Claude
Bernard, respectively. It is suggested that though history of medical science seems indeed to exhibit a
fundamental schism, it is not due to allegiance, or opposition, to empiricism proper, as Coulter
wishes, but stems, among other factors, from the kind of experimental evidence taken as relevant for
medicine, from the particular form in which the relationships between experience and theory are
conceived, and from the nature of the explanatory hypotheses allowed in medicine.



Key-words: Empiricism. Medical science. Scientific realism. Rationalism. Homeopathy. Samuel
Hahnemann. Claude Bernard.




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